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O processo de maturação dos queijos: breve estudo do Grana Padano (DOP)

Este artigo é uma adaptação resumida de uma apresentação para a disciplina de Tecnologia dos Laticínios do curso de mestrado de Engenharia do Instituto Superior de Agronomia (ISA), realizada em 2019 e aborda brevemente os principais processos físico-químicos, bioquímicos e microbiológicos da maturação (ou cura) dos queijos. Paralelamente, abordo alguns aspectos da maturação do queijo Grana Padano, com denominação de origem protegida (DOP) em Itália. Um queijo de maturação longa. Boa leitura!

A origem do Grana Padano

Em italiano, o vocábulo ‘grana’ é um substantivo feminino que, entre outras definições, é descrito por: “estrutura mais ou menos delicada e compacta de um corpo sólido, de aparentes secções ou camadas, tal como é visível no mármore”. Também é definido como: “corpo não compacto, consistido de grânulos ou superfície arenosa”. Etimologicamente, provém do latim grana (plu. granum) ou grão em português.((GABRIELLI, A.; Grande Dizionario Italiano HOEPLI https://www.grandidizionari.it/Dizionario_Italiano/parola/G/grana_1.aspx?query=grana+(1) ))

Nos idos do século XI, Grana também passou a ser o nome pelo qual os camponeses sem domínio do latim referiam-se ao caseus vetus ou “queijo envelhecido”, produto então criado no interior da Abadia de Chiaravalle (figura 1), um monastério da ordem cisterciense, instalado ao sul de Milão, na Lombardia, e que ali permanece até os dias atuais.((“Consorzio per la Tutela del Formaggio Grana Padano” https://www.granapadano.it/))((Monasterio di Santa Maria di Chiaravalle. https://www.monasterochiaravalle.it/it-it/storia-e-arte.aspx))

A intenção dos monges era conservar o leite por períodos mais longos, por meio de práticas que incluíam o cozimento, a salga e a cura do queijo.((“Consorzio per la Tutela del Formaggio Grana Padano” https://www.granapadano.it/))

O Grana Padano (GP) é tido entre os queijos mais populares da Itália.((DE ANGELIS CURTIS, S.; CURINI, R.; DELFINI, M.; BROSIO, E.; D’ASCENZO, F.; BOCCA, B.: Amino acid profile in the ripening of Grana Padano cheese: a NMR study. Food Chemistry: 71 (2000) 495-502)) É conferido ao produto o status de Denominação de Origem Protegida (DOP) pela União Europeia, sendo o uso do nome Grana Padano limitado aos produtores aderentes ao “Consorzio per la Tutela deli Formaggio Grana Padano“, e cujos queijos atendam aos requisitos de qualidade e métodos de produção estabelecidos no código de produção.((MASOTTI, F.; HOGEBOOM, J. A.; ROSI, V.; DE NONI, I.; PELLEGRINO, L.; Proteolysis indices related to cheese ripening and typicalness in PDO Grana Padano cheese,
International Dairy Journal, (20:5), 2010, pp. 352-359))((European Union. 2011. Regulation no 584/2011. Approving non-minor amendments to the specification for a name entered in the register of protected designations of origin and protected geographical indications (Grana Padano PDO). OJ L 160, 18.06.2011, 65-70.)) É produzido nas províncias da chamada Planície Padana (Figura 2)1, que corresponde ao vale do rio Pó (Padus em latim), o flúmen mais extenso do território italiano que corta longitudinalmente o Norte daquele país (figura 2).((BRITANNICA. Po River, Italy. https://www.britannica.com/place/Po-River))

FIGURA 1 (esquerda): Abadia de Chiaravalle, da ordem cisterciense, fundada em Milão por San Bernardo di Clairvaux em 1135.2 FIGURA 2 (direita): mapa do norte da Itália e o rio Pó que corre transversalmente o território daquele país.((BRITANNICA. Po River, Italy. https://www.britannica.com/place/Po-River))

Etapas de produção do Grana Padano

O Grana Padano é produzido à base de leite cru em animais ordenhados em intervalos de 12 horas. O leite é parcialmente desnatado por método de desnatação superficial (surface skimming), tendo o seu teor de gordura reduzido a valores entre 2,1 e 2,2 g/100 mL((D’INCECCO, P.; PELLEGRINO, L.; HOGENBOOM, J. A.; COCCONCELLI, P.; BASSI, D.: The late blowing defect of hard cheeses: Behaviour of cells and spores of Clostridium tyrobutyricum throughout the cheese manufacturing and ripening. LWT – Food Science and Technology, 87(2018), 134-141.)) e uma relação gordura/caseína entre 0,80 e 1,05.((“Consorzio per la Tutela del Formaggio Grana Padano”. https://www.granapadano.it/))

Após a desnatação, o leite é transferido para caldeiras de cobre, onde soro (whey) rico em LABs da produção anterior é adicionado e servirá de starter para iniciar a coagulação. Cozido e submetido a cura por período não menor do que 9 meses, à temperatura e humidade controladas entre 15°C e 22°C e 85% e 88%, respectivamente, no que resulta num produto de massa dura e sabor distinto.((PELLEGRINO, L.; ROSI, V.; D’INCECCO, P.; STROPPA, A.; HOGENBOOM, J. A.: Changes in the soluble nitrogen fraction of milk throughout PDO Grana Padano cheese-making. International Dairy Journal: 47 (2015) 128-135SCOTT, R. “Cheesemaking practice”. 2nd edition. Elsevier Applied Science Publishers LTD, New York, USA, 1986.))

O período mínimo de maturação de um queijo GP é de 9 meses, mas pode ser estendido a mais de 20 meses, subdivido em três grupos principais de maturação: de 9 a 16 meses, acima de 16 meses e além de 20 meses de cura. De acordo com o Consorzio Tutela Grana Padano, em cada um destes intervalos são observados diferentes conjuntos de características sensoriais.((“Consorzio per la Tutela del Formaggio Grana Padano”. https://www.granapadano.it/))

Abaixo: galeria de imagens (figuras 3, 4, 5, 6, 7 e 8) com as diversas etapas de produção do queijo Grana Padano. Fonte: acervo pessoal de Felipe Muniz, Itália (2015).

Principais vias metabólicas da maturação

A maturação do queijo se inicia com a digestão enzimática da coalhada. A coagulação e drenagem desta aglutinação resulta num substrato formado essencialmente por caseínas, gordura e componentes solúveis do leite.((DE ANGELIS CURTIS, S.; CURINI, R.; DELFINI, M.; BROSIO, E.; D’ASCENZO, F.; BOCCA, B.: Amino acid profile in the ripening of Grana Padano cheese: a NMR study. Food Chemistry: 71 (2000) 495-502)) O processo de cura envolve em muitas e complexas modificações físico-químicas e enzimáticas que ocorrem em simultâneo ou sucessivamente que resultam nas alterações que conferem as características típicas de textura, aparência, consistência, cor, aroma e flavour de cada queijo (figura 9).((DE ANGELIS CURTIS, S.; CURINI, R.; DELFINI, M.; BROSIO, E.; D’ASCENZO, F.; BOCCA, B.: Amino acid profile in the ripening of Grana Padano cheese: a NMR study. Food Chemistry: 71 (2000) 495-502))((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. II. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))

As reações bioquímicas que ocorrem durante o processo de maturação podem ser agrupadas da seguinte maneira:

  1. Glicólise da lactose residual e catabolismo do lactato
  2. Catabolismo do citrato, que é importante em algumas variedades
  3. Lipólise e catabolismo dos ácidos graxos livres, e
  4. Proteólise e catabolismo dos aminoácidos

Figura 9 Visão geral das vias bioquímicas durante o processo de maturação dos queijos. (a) proteólise, (b) lipólise, (c) metabolismo da lactose, lactato e citrato – Fonte: McSweeney & Sousa (2000).

Fontes enzimáticas

Ao discorrer sobre os processos de lise dos substratos do leite é importante apontar as variadas origens das enzimas que atuam sobre a coalhada desde a sua formação. Obviamente os tipos e a atuação de cada enzima são muito específicos e tal conformação é única para cada variedade de queijo. Porém é possível destacar grupos comuns consoante o tipo de substrato que atacam e a forma como atuam:((WALSTRA, P.; GEURTS, T. J.; NOOMEN, A.; JELLEMA, A.; van BOECKEL, J. S.; “Dairy Technology: Principles of Milk Properties and Processes”. Marcel Dekker Inc, New York, USA, 1999.))

  1. Enzimas proteolíticas (EC 3.4) divididas em:
    1. Endopeptidases ou protéases que hidrolisam proteínas a peptídeos
    2. Exopeptidases que dividem peptídeos em peptídeos menores ou em aminoácidos
  2. Enzimas que decompõe aminoácidos produzidos por exopeptidases (descarboxilases, desaminases, transaminaeses, demetilases)
  3. Lipases (EC 3.1.1) que quebram triacilgliceróis (TAG) em ácidos gordos livres
  4. Enzimas que degradam ácidos gordos e seus derivados, como por exemplo desidrogenases e descarboxilases.

Origens enzimáticas possíveis:

  1. Enzimas do coalho
  2. Enzimas endógenas do leite, sobretudo lípases e proteases
  3. Da flora superficial (queijos embolorados) ou flora interna (queijos azuis)
  4. Enzimas provenientes de bactérias presentes no leite cru e que resistiram à pasteurização
  5. Proteases e lipases extracelulares termorresistentes de organismos psicrotróficos do leite cru que igualmente resistiram ao processo de pasteurização
  6. Enzimas provenientes de flora recontaminante no leite ou indesejáveis que porventura contaminam a casca do queijo

Glicólise da lactose

Ao final do processo de manufatura, a coalhada apresenta níveis residuais de lactose, sendo a maior parte desperdiçada no soro e o restante fermentado pelas culturas de arranque ou starter de bactérias de ácido láctico (LABs) nos instantes iniciais do processo de cura. A via catalítica da lactose estará condicionada ao tipo de starter utilizado, tendo a lactato desidrogenase (L-LDH ou D-LDH) a enzima responsável pela lise de piruvato a lactato na última etapa da via fermentativa em questão. Na presença de Leuconostoc spp., a fermentação dá-se por meio da via fosfoquetolase, o que resulta na produção de lactato, etanol e CO2.

A conversão de lactose a lactato, por fermentação láctica, leva a acidificação do meio o que influencia a ação de enzimas envolvidas na maturação e o crescimento de culturas secundárias (NSLAB ou non-starter LAB). Tais NSLABs convertem L-Lactato a D-Lactato por racemização e, devido à sua menor solubilidade, à formação de cristais de lactato de cálcio (C6H10CaO6), visíveis na parte interna e externa de alguns queijos. Nos queijos suíços, o lactato é catabolizado a propionato, acetato H2O e CO2 por Propianobacterium freudenreichii subs. Shermanii conferem características de flavour, enquanto o CO2 aprisionado resulta nos olhos típicos deste tipo de queijo.

No caso particular dos queijos grana italianos como o Parmegiano-Reggiano e o Grana Padano, estudos apontam uma discrepância na composição de tais cristais entre os dois queijos. Enquanto aparentemente os cristais formados no Parmigiano-Reggiano possui alta concentração de tirosina, os pontos esbranquecidos no Grana Padano poussuem alta concentração de leucina e isoleucina (figura 10).((BIANCHI, A.; BERETTA, CASERIO, G.; GIOLITTI, G.: (1974). “Amino Acid Composition of Granules and Spots in Grana Padano Cheeses”J. Dairy Sci. 57: 1504–1508.))((TANSMAN, G.F.; KINDSTEDT, P. S., HUGHES, J.M.; Crystal fingerprinting: elucidating the crystals of Cheddar, Parmigiano-Reggiano, Gouda, and soft washed-rind cheeses using powder x-ray diffractometry. Dairy Sci Technol. 2015;95:651-664. doi: 10.1007/s13594-015-0225-6. Epub 2015 May 8. PMID: 27034746; PMCID: PMC4768243.))

Figura 10: presença de pontos esbranquecidos e cristais na massa de uma amostra de queijo Parmigiano-Reggiano.

Um ponto fulcral é o catabolismo anaeróbio do lactato a butirato e H2 por ação de Clostridium tyrobutyricum, o que causa Late Blowing Defect (LBD), um conhecido defeito em queijos de massa dura ou semidura, como o GP, levando a ruturas na massa e a sabores indesejados (figura 11).((GOFF, H. D.: “The Dairy Education eBook Series”. University of Guelth, Canada. (acessado em 10 de maio de 2019). Sítio eletrônico: https://www.uoguelph.ca/foodscience/industry/dairy-education-ebook-series))

Figura 11: Detalhes do Late Blowing Defect (LBD) com a presença de bolhas ou “olhos” na massa de Grana Padano. Resultado da atividade de bactérias, geralmente do gênero Clostridium. Fonte: Da Silva Duarte et al. (2022)((DA SILVA DUARTE, V.; LOMBARDI, A; CORICH, V.; GIACOMINI, A. Assessment of the microbiological origin of blowing defects in Grana Padano Protected Designation of Origin cheese. Journal of Dairy Science, Volume 105, Issue 4, 2022, pp. 2858-2867.))

Um ponto fulcral é o catabolismo anaeróbio do lactato a butirato e H2 por ação de Clostridium tyrobutyricum, o que causa Late Blowing Defect (LBD), um conhecido defeito em queijos de massa dura ou semidura, como o GP, levando a ruturas na massa e a sabores indesejados.

Proteólise

Provavelmente, a proteólise é o processo bioquímico mais complexo durante a cura do queijo. Verifica-se, a grosso modo, uma sequência reações em cascata em que a ação do coalho (ou outro agente coagulante) sobre as micelas de caseína leva a formação de polipeptídeos. Estes sofrem a intensa ação de protéases das enzimas do starter que degradam estes a peptídeos menores e aminoácidos. Deste ponto em seguida, a ação de desaminases, transaminases, liases e descarboxilases criam bifurcações para uma gama de caminhos bioquímicos e a consequente produção de uma variedade de compostos químicos, como ilustra a figura 12.((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. I. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))

Figura 12: Fluxograma simplicado da metabolização da caseína. Fonte:1

Lipólise

A hidrólise enzimática dos triacilgliceróis (TAG) a ácidos gordos livres e di– e monoglicerol durante a cura do queijo é responsável pela formação de muitos compostos voláteis e outros responsáveis pelo flavour do queijo.((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. I. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. II. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.)) Em geral, a gordura nos alimentos sofre oxidação, facto pouco significante nos queijos, possivelmente dado ao seu baixo potencial redox (-250 mV).

O papel da lipase lipoproteica (LPL) como potente lipase endógena do leite, de origem plasmática, que atua na degradação de triacilgliceróis, sobretudo daqueles de cadeia média. Apesar desta enzima sofrer inativação parcial em leites submetidos a tratamento térmico (HTST a 72°C/15s), pasteurização alta, a sua atuação ainda é verificada durante o processo de cura de queijos de leite pasteurizado.((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. I. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))3

O processo de cura do queijo compreende um conjunto complexo de eventos físicos, químicos, bioquímicos e microbiológicos que resultam na transformação do leite em um produto com estrutura e flavours peculiares.

De uma forma geral, pode-se entender que de um lado, o conjunto de substratos: lactose, proteínas, lípidos sofrem a degradação por enzimas sejam estas provenientes do próprio leite, de aditivos, produzidas por microrganismos para desempenhar processos fermentativos ou, até mesmo, dispersas no meio como resultado de tais processos fermentativos por meio de autólise.

Essa intensa atividade química é constantemente influenciada por temperatura, humidade, teor de sal (NaCl), composição do leite, composição da microflora e pH. É interessante notar é a interação complexa desses condicionantes, onde, por exemplo, o pH influencia a atividade de algumas enzimas e essas por sua vez influenciam o pH.((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. I. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))((FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. II. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004.))

A cura do queijo mostra-se um sistema complexo, cuja interação entre os fatores e variáveis ocorre ora simultaneamente, ora sucessivamente.

[…] a degradação dos TAGs leva à produção de vários compostos responsáveis pelo flavour do queijo, como também produzem compostos voláteis ésteres de ácidos gordos, frutos da reação deste último com álcoois.

Referências

  1. FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. I. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004. [] []
  2. Monasterio di Santa Maria di Chiaravalle. https://www.monasterochiaravalle.it/it-it/storia-e-arte.aspx []
  3. FOX, P. F.; McSWEENEY, P. L. H.; COGAN, T. M.; GUINEE, T. P. (Editores). Cheese: Chemistry, Physics and Microbiology. 3rd. Edition. Vol. II. Elsevier Academic Press, London, UK. 2004. []